segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Concepção de humano (além do humano).

Errar é humano. Errar como erro e errar como errância. É uma das pouquíssimas generalizações teóricas que se pode encontrar na obra de Michel Foucault. Nem ele, profundo adversário dos universais a priori, deixou de formular uma concepção de ser humano. Seres humanos como seres pensantes, onde formas de agir e formas de pensar se pressupõem mutuamente. Entre erros e errâncias. Foucault aprendeu muito com Georges Canguilhem, não há de se negar. Só há a priori histórico, certamente, então, nenhuma forma de humano pode ser pressuposta. Apenas na perspectiva da própria prática de sentido, que produz sujeito como multiplicidade do seu campo de práticas, pode-se falar de erro ou certeza, errância e fixidez, a forma no fluxo é um ato de apropriação. Dá para entender assim por que Foucault não gostava de Wittgenstein e se aproximava muito, mas muito mesmo, de Austin. O conceito de discurso em Foucault é austiniano. Foucault reconheceu isso numa carta que escreveu a John Searle. As formas socioculturais de vida estão a todo tempo sendo desafiadas a elaborar respostas para problemas que surgem ao acaso, na contingência histórica que caracteriza o modo de existência humana, e também sob as injunções da falta de sentido que as assombram. A questão do erro ocupa uma posição central na análise das fragilidades humanas elaboradas pelas respostas dos sistemas sociais abertos, cuja organização é maneira de obter algum tipo de controle sobre a força desagregadora dos acasos. É a própria vida social que pode ser definida segundo a sua capacidade de errar (cf. Foucault, iv, p.774). E o errar precisa ser entendido em seu duplo sentido de cometer erros, leituras inadequadas das situações, mas também de errância da própria condição social que não para de se deslocar em relação àquilo que a condiciona. "Criar um animal que pode fazer promessas - não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?" (Nietzsche, GM, p.47). Memória e esquecimento e a relação com o sistema de crueldade, a história da responsabilidade humana. Humano é aquele que não existe enquanto ser, é uma ponte (Nietzsche, Heidegger), não existe como substrato, antes ou por trás do "atuar, do devir", 'o agente' "é uma ficção acrescentada à ação" (Nietzsche, GM, p.36). Em AFZ, "uma corda sobre o abismo", "é o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar", "é ser ponte, "é ser uma transição e um ocaso" (Nietzsche, AFZ, p.38) Ter "caos dentro de si" (p.41). "Assombrosa é a existência humana e ainda sem qualquer sentido" p.44. Rumar para fora da coletividade. O estranho (ver Heidegger) em oposição aos que se consideram "bons e justos" e "se dizem os crentes da verdadeira fé", os pastores de rebanho por oposição ao destruidor-criador (Nietzsche, AFZ, p.47). Errar. Erro e errância (cf. Foucault). "criar para si a liberdade de novas criações" e "conquistar o direito de criar novos valores" (AFZ, p.52). "a contradição e a confusão do eu" (p.57). Falas do eu, falas do corpo, "corpo criador" (AFZ, p.61) da apreço e desprezo, de apreciações diferenciais (Foucault). "Avaliar é criar" (Nietzsche, AFZ, p.86). O que luta com o acaso e com o absurdo, o que não tem sentido, tornar-se criador de sentido e valor (ver p.104). Aquele que entre humanos dificilmente se cala (p.119). Falar. Capazes de pensamento, ação e imagem de ação. O silêncio que é herdado fala no herdeiro o silêncio de quem dispôs a herança. O silêncio como herança que fala, mesmo em silêncio. O que vive no abismo entre o dar e o receber, onde os vizinhos não se entendem, onde há veneno nas relações (p.136). Aquele que exerce o poder com as palavras que avaliam o bem e o mal (p.146). Aquele cuja "vida inteira é uma discussão sobre gostos e sabores" (p.147). Aquele que degusta, que saboreia, e faz do gosto apurado uma distinção, um discernimento, um exercício de poder. Os que usam máscaras sobre os rostos, e os rostos são máscaras igualmente, os que escondem com os rostos os sinais do passado, os signos da existência, que tornam difíceis as tentativas de interpretação, os que enganam os intérpretes (p.150). Aquele que vive a experiência de si mesmo e que precisa aprender a desviar o olhar de si para ver multiplicidades de práticas, de realidades, de coisas (p.188), aquele que navega "ao léu por mares incertos", seduzido pelo acaso, que olha para frente e para trás, e não vê "qualquer fim" (p.198). Aquele que cozinha e profere discursos. Aquele que desaprende a conhecer os humanos que vive na coletividade com eles, mas que pode se distanciar, olhar distanciado, olhar para longe, para fora, para o exterior, para o estranho e se fazer estranho no caminho da linguagem. Aquele que cria marcos de fronteiras. Fronteiras morais. A socialidade humana é feita de tentativas, não de contratos, na tentativa se busca quem comanda (p.253), o gosto moral e estético que comanda a mudança das opiniões. Aquele que escuta a tagarelice dos outros e também tagarela, locutor, capaz de locução, aquele que fala e ao falar faz o mundo para si, "toda alma tem o seu mundo, diferente dos outros; para toda alma, qualquer outra alma é um transmundo" (p.259). É o animal mais cruel contra si mesmo. É mortal e apenas agindo, aprende, aprender com as maneiras de agir. Aquele que impõe sua lei para todos. Os que riem da autoridade de quem impõem leis. Os que permanecem estranhos a si mesmos, que não se compreendem a si próprios, os que se mal-entendem (Nietzsche, GM, p.7). Aqueles que nomeiam os valores que criam ou que nomeiam os valores que reconhecem. Experimentador de si mesmo, insatisfeito, insaciado, o mais exposto ao perigo (p.110 da GM).

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