terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sentir-se é o modo da corporalidade

Corporalidade e sentimento estão em pressuposição recíproca, por isso não há de se pensar o corpo como algo fisiológico e o sentimento como algo que está num patamar superior, como se o corpo fosse uma infraestrutura para um sentimento da alma que habitaria num nível superior uma superestrutura psíquica. Se há pressuposição recíproca, há causação circular entre corpo e alma, entre corporalidades e sentimentos. Os sentimentos são as corporalidades, uma vez que "o sentimento como sentir-se é, precisamente, a maneira como somos corporais; ser corporal não significa que um apêndice chamado corpo é simultaneamente ligado à alma, mas no sentir-se o corpo está desde o princípio co-inserido em nosso si próprio, e, com efeito, de um modo tal que ele permeia a nós mesmos em seu estar em tal ou tal estado" (Heidegger, p.91). O sentimento tanto realiza a feitura de um corpo como é na corporalidade, enquanto corporalidade, que se interpela discursivamente ou não discursivamente as coisas e os seres com quem nos relacionamos nos mundos em que habitamos. O indivíduo, como efeito do espaço das relações que o tecem, é também o lugar do experimento baseado nos processos de incorporação dos erros, paixões, dos saberes, etc. É no modo "como nos incorporamos a nós mesmos" (Nietzsche) que se efetua a corporalidade como um sentir-se, algo para além das condições biológicas que causam o corpo sem serem sua causa suficiente. O conceito central então para darmos conta da compreensão do modo corporal humano, pois bem se trata de uma antropologia de nós mesmos que estamos a propor, é o conceito de incorporação (cf. Heidegger, p.255). A relação com o incorporado é uma das dimensões mais significativas da finitude radical do humano frente à tarefa do seu fazer o corpo. São as zonas de transição entre o incorporado e o processo de incorporação, enquanto incorporação de novos saberes, novas paixões, etc. que irão definir os processos de identificação sem os quais a relação entre estabilidade e transitoriedade na vida sociocultural não poderiam ser sequer interpretadas. O que foi incorporado é a resultante de um processo de incorporação de relações sociais. A incorporação e a desincorporação das relações ganha nesse sentido um lugar central para a análise (ver Viveiros de Castro, por exemplo). O incorporado é capaz de corporificar itens de enquadramento da experiência de incorporação, de modo que corporificar as relações é um modo de produzir a substância da vida social, e a natureza principal dessa incorporação é a da incorporação do pensamento, a incorporação das concepções incorpóreas que definem os limites da experiência. No jogo da vida, os erros e as opiniões incorporados decidem as condições futuras da existência. O corpo incorporado estabiliza fluxos, produz alguma segurança ontológica diante do turbilhão da vida, enquanto jogo da vida. "A vida vive na medida em que se corporifica" (Heidegger, p.439). A corporificação de um corpo produz o incorporado como uma forma de vida diante do turbilhão, frente ao abismo, no risco intensivo do devir, a saber, do próprio real. Nesse sentido, "o corpo é ao mesmo tempo transmissão e passagem" (Heidegger, p.440). Com isso, extraímos um ponto central para o tipo de análise antropológica que estamos propondo: "o corpo precisa ser transformado em fio condutor não apenas para a consideração do homem, mas também do mundo: a projeção do mundo a partir da posição do animal e da animalidade" (Heidegger, p.440). É na compreensão da determinação do corpo que reside o fio condutor da interpretação do mundo.

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