terça-feira, 20 de agosto de 2013

O lugar absoluto

Barulhos e ruídos. Um ranger de porta. Um buzinaço. Uma voz que chama. Começar a escutar sons que ferem o estado de sono, sons que nos fazem passar a uma vigília incerta, tateante, despertar, abrir os olhos, acordar com o barulho da vida coletiva. E ela é ruidosa. Levantar de uma noite bem dormida ou mal dormida, bem amada ou mal amada, no conforto ou no desconforto, ir tomar um banho, esse privilégio global, escovar os dentes, caminhar, comer algo decente, outro privilégio global, apesar de não se ter tanta certeza quanto a algo para além das aparências poder ser considerado uma comida decente, ver sombras e luzes, escutar a própria respiração, sentir o cheiro de um outro ou o cheiro de si, do suor noturno que se esvaiu como o jato de mijo que também tem seu ruído matinal característico. Seja onde for, sejam em quais circunstâncias, sejam as condições mais ou menos embrutecidas, o ser humano, esteja onde estiver, ao despertar para mais um ciclo da vida diária, após o sono que fizera tombar a realidade na luta onírica contra a latência da vida que se nos escapa, um tombo que a deforma, o ser humano então dá-se conta de que há um lugar do qual não se pode mais e jamais escapar, enquanto se estiver vivo, ao menos. Um lugar sem o qual não haveria sequer deslocamento do indivíduo pelo espaço, não haveria propriamente o indivíduo desse espaço das relações que o constituem como um efeito de suas tramas e ardilezas e ciladas, mecanismos e suas contingências que lhes são tão repetidamente inescapáveis. De qual lugar é esse de que falamos? De qual lugar é esse do qual não se pode jamais prescindir o indivíduo enquanto pessoa no seu devir? Trata-se do lugar do corpo. O lugar absoluto do corpo. Uma vez que o corpo não nos abandona, nem mesmo quando nós o abandonamos, maltratando-o, ferindo-o, jogando-o num lugar qualquer como uma coisa inerte que se descarta. Esse lugar de abandono, essas zonas de abandono, de dor, de sofrimento, de auto-aniquilamento, por vezes, não são capazes de exterminar a capacidade total do corpo, enquanto não romper as amarras com os limites da experiência que o mantém em pleno funcionamento, a vida como uma relação com a morte, e esse qualquer fragmento do corpo abandonado, sofrido, lançado à diante na zona de indecisão, ele será sempre o lugar do próprio corpo, pois "je ne peux pas me déplacer sans lui; je ne peux pas le laisser là où il est pour m'en aller, moi, ailleurs. Je peux bien aller au bout du monde (...), il sera toujours là où je suis. Il est ici irréparablement, jamais ailluers. Mon corps, c'est le contraire d'une utopie, ce qui n'est jamais sous un autre ciel, il est le lieu absolu, le petit fragment d'espace avec lequel, au sens strict, je fais corps". (Foucault).

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