domingo, 3 de fevereiro de 2013

Estar fora dos centros, estar deslocado do lugar.

O fenômeno da mútua percepção entre pessoas é o ponto de partida das descrições etnográficas das relações sociais e também condição da análise. As pessoas estão imersas nas relações recíprocas que as constituem como praticantes de práticas de sentido situadas nas redes de relações instituintes de fronteiras simbólicas que produzem seus próprios coletivos, suas territorialidades e maneiras de uso do espaço e do tempo. As pessoas vivem de acordo com proposições cuja validade é uma função das crenças que foram depositadas naquilo que elas dizem de si mesmas na relação consigo e na relação com outros, como dizia Bateson. Ou, antes dele, Nietzsche, pois, por mais importante que seja conhecer motivos reais da conduta humana, o que nos importa como etnógrafos de alguma humanidade, ou ex-humanidades, é aquilo que as pessoas presumem e imaginam ser o real motivo de suas ações em função das crenças nos motivos do agir que, afinal, definem aquilo pelo que se mata ou pelo que se morre ou que pelo que se vive com tais ou quais felicidades e misérias. Wittgenstein dizia que um caminho certo é aquele que leva a um fim que foi arbitrariamente predeterminado por um agente, portanto, não haveria nenhum sentido em falar em caminho certo de modo absoluto, sem que se leve em consideração o objetivo predeterminado por alguém para o estabelecimento do que é certo. Em vez de desfazer o sentido da reflexão ética, ele nos mostra com esse pensamento que o problema é a afirmação por alguém do sentido absoluto do caminho certo, que seria certo enquanto tal, válido para todos os casos possíveis. Isto não passaria de uma quimera, pois, como Oswald de Andrade escreveu no Manifesto Antropófago, “as ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas”. Defesas de sentidos éticos absolutos são máquinas de colonização e catequização do pensamento dos outros, armas de desrealização das ideias alheias, reduzindo-as ao estatuto ontologicamente frágil do que se convencionou chamar “crença”, uma desrealização da substancialidade própria da episteme do outro. Dizer das ideias dos outros que elas são crenças é uma operação de guerra de conquista, um “epistemicídio”, de que fala Viveiros de Castro com nativos relativos. É possível produzir conhecimento com linguagens conceituais e procedimentos metodológicos rigorosos, certamente. Moralidades possíveis, virtualidades minoritárias e políticas contra quaisquer totalizações do real são o princípio condutor da empresa. Moralidades sem pretensão à universalidade, pois só há a priori histórico, como diz Veyne, dialogando com uma noção caríssima ao pensamento de Foucault. Estar fora dos centros hegemônicos de pensamento não é estar por fora do que se produz de conhecimento nos centros, afinal só há centros relativos às periferias relativas aos centros imaginados em relação a posicionalidade dos pesquisadores e pesquisadoras envolvidos nessas redes de estratificação dos mundos acadêmicos periféricos. São fantasias de poder que tornam literais as realidades dos centros. O pior centro de poder, o mais risível, pelo menos, é aquele que se constitui em torno da ilusão de um eu que concebe a si próprio como centro das relações sociais. Se colegas estão fora dos centros sem estarem por fora do que os proselitismos teóricos dos centros nos oferecem para consumo, como imaginar a produção de conhecimento e a reflexão teórica e política desta produção a partir de quem, como nós, está em função da periferias tomadas como centros? Esta pergunta retórica é apenas para que lembremos de incorporar criticamente, pegando carona nos termos reflexivos do casal Comaroff, a nossa condição de periferia intelectual e de dependência frente à produção e à circulação de ideais. E incorporar não é aceitar, não é reconhecer, é, ao contrário, superar o desconhecimento dessa condição. Frentes intelectuais atuando na periferia de outra periferia precisam fazer da reflexão sobre esta condição uma vantagem epistêmica contra as violências epistêmicas da ordem das coisas.

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